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    Coração de Cachorro
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Coração de Cachorro

    A percepção da morte

    por Bruno Carmelo

    Este filme começa com uma cena em animação, na qual o alter-ego animado da diretora Laurie Anderson conta uma história. A personagem fala sobre o sonho em que dá à luz à própria cadela. Mas ela não tinha engravidado do animal, e sim pedido aos médicos para costurarem o animal vivo dentro de sua barriga, para poder pari-lo depois – algo difícil, já que o bicho resistia e não parava de latir. O conto é afetuoso, mas ao mesmo tempo perturbador. Este é o tom de Coração de Cachorro, uma investigação sombria sobre a nossa percepção diante da morte.

    Por mais que se discuta a morte de entes próximos (a cadela da diretora, mas também sua mãe e seus dois irmãos), o tom é pouco sentimental. Isso ocorre devido às imagens descoladas do referencial: enquanto a narração onipresente de Anderson discorre sobre temas filosóficos e místicos, as imagens efetuam colagens, sobreposições e ilustrações livres dos temas relatados. Existe um distanciamento cerebral em relação ao tema, que separa o documentário dos dramas sobre a dor de perder um bicho de estimação.

    A maior surpresa deste projeto é a amplitude do discurso. Partindo de ponto muito preciso – a doença e a morte da cadela Lollabelle -, a cineasta discorre sobre a morte em geral, sobre a perda, sobre a passagem do tempo e mesmo sobre a política. A cineasta compara sua dificuldade em fazer o luto da cadela com a dificuldade dos Estados Unidos em fazer o luto dos atentados de 11 de setembro. Os dois casos são vistos por um ponto de vista ao mesmo tempo pessoal e universal, íntimo e abrangente. Todos podem se identificar com a dor de se despedir de alguém querido, que seja em nível individual ou coletivo.

    Anderson adota então diversas ferramentas para oferecer um olhar plural e fragmentado do tema: ela funciona como filósofa ao fazer releituras de Kierkegaard e Wittgenstein, evoca a biologia e psicologia para pensar na relação dos sentidos (visão, audição, tato) na relação com a morte, torna-se uma personalidade mística ao explicar o falecimento pelo ponto de vista budista, e assume o papel de artista experimental com suas colagens, seus temas musicais dissonantes e sua paixão sinestésica pela arte.

    As associações são ao mesmo tempo improváveis e pertinentes, comprovando a fineza do raciocínio de Anderson. Seu documentário poderia ser comparado a grandes obras como Nostalgia da Luz e Sem Sol, que também efetuam a transição entre casos pessoais e a dor de toda uma nação, articulando a função do espaço com a função do tempo. Talvez as únicas ressalvas possam ser feitas à narração etérea demais – Coração de Cachorro lembra uma aula de filosofia revestida numa estética de sonho – e às descrições longas do pensamento budista. Mas nada que atrapalhe esta experiência ousada e envolvente.

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