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    Princesinha
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Princesinha

    Os adultos e os monstros

    por Bruno Carmelo

    “Um dia desses, você vai perceber uma mancha de sangue na calcinha. Isso significa que você estará madura”. Esta frase, dirigida a uma pré-adolescente, poderia sair da boca dos pais, ou talvez da professora da escola. Mas ela vem de um líder religioso, Miguel (Marcelo Alonso), que organiza uma seita secreta com adolescentes em meio à natureza. Por observamos a instituição através dos olhos confusos da garota, nunca sabemos exatamente em que este grupo consiste. Ainda assim, é claro que os atos sexuais são frequentes e indispensáveis ao funcionamento local. Miguel prossegue: “Em breve vou fazer um filho com você, e você será a minha sucessora”.

    Princesinha constitui uma mistura perturbadora entre drama e suspense, por articular elementos perfeitamente universais (a puberdade, a entrada na fase adulta) com um contexto aberrante (a seita, o abuso sexual de menores). O público desta sessão pode ficar chocado com as descrições explícitas do ato sexual prometido entre o Miguel e Tamara (Sara Caballero), mesmo que a própria garota, por ingenuidade, acredite estar sendo criada num contexto de amor e fraternidade. A estética da diretora Marialy Rivas acompanha os devaneios: a câmera desliza lentamente por bosques floridos, os raios do sol invadem todas as imagens, as vozes em off sussurram mensagens de harmonia.

    Estamos numa espécie de conto de fadas macabro, ou mais precisamente uma cautionary tale – fábula destinada a preparar os jovens para os perigos do mundo adulto. Como Chapeuzinho Vermelho, a garota precisa se esquivar dos caminhos fáceis e dos discursos prontos, caso contrário, será devorada pela natureza e pelos homens. Miguel reproduz a mistura de benevolência e agressividade que já tinha transmitido no excelente O Clube (cujo diretor, Pablo Larraín, também produz este filme), mas é uma pena que a intérprete de Tamara não esteja à altura de seus companheiros de cena. Sara Caballero tem grande responsabilidade de traduzir medo, inconsequência e curiosidade, no entanto, perambula pela tela com uma presença etérea, ausente, de difícil identificação.

    O drama evita fornecer informações essenciais para a crença do espectador neste universo. De onde vem esta seita? Sendo formada por dezenas de adolescentes ao redor de um único adulto, onde se encontram os pais dos jovens? Eles entregaram os filhos voluntariamente? Como uma casa de portas abertas consegue manter o segredo de sua existência? Alguém já tentou fugir? Se o líder religioso teme a contaminação com o mundo exterior, porque cede a sua mais preciosa integrante à escola tradicional – já que a educação interna foi boa o suficiente para os outros? Na ausência de respostas, transitamos por uma espécie de delírio, no limiar do realismo fantástico. Aquela seita se justifica pela necessidade de ficção, e as reviravoltas, pelo imperativo de conflitos.

    Resta uma produção de extremo cuidado estético, ao limite do excesso com seu ritmo lânguido e suas luzes sensuais. O fato de abordar a violência contra menores em tom tão abertamente erótico – ao invés de cru, distanciado, crítico – gera uma incômoda sensação de aderência àquele ambiente. Ao menos, o roteiro guarda para a conclusão uma catarse necessária, uma verdadeira transição à fase adulta pelas vias da tragédia. Tamara se tornará madura não pela participação nos rituais impostos, e sim pela possibilidade de transgressão. Neste sentido, Marialy Rivas permite criar uma figura corajosa, ainda que sua força venha da sujeição ao martírio.

    Filme visto no 13º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2018.

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