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    A Filha
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    A Filha

    Cenas de um casamento

    por Taiani Mendes

    Eis aqui um dramão. Favor não confundir com dramalhão. O drama é grande, profundo, acachapante, quase nada excessivo ou piegas. O diretor – e roteirista –  Simon Stone está usando Henrik Ibsen, tratando de complexas questões humanas. A base da trama é a peça O Pato Selvagem, publicada pelo dramaturgo norueguês em 1884. Diz o texto que tal espécie, quando abatida em voo, vai ao fundo do lodo, o máximo possível, e se agarra pelo bico a tudo que tem lá para jamais voltar à superfície, a não ser que seja encontrada e “resgatada” por um cão de caça. Existem três patos em A Filha: Oliver (Ewen Leslie), Hedvig (Odessa Young, jovem talentosa que é a fonte de luz do filme) e um animal de verdade, que recebe o nome de Sortuda. O cão é Christian (Paul Schneider, tão deslocado quanto em Parks and Recreation, só que no caso à serviço da história) e está em jogo o significado de "resgate".

    A filha não é dada de bandeja ao espectador. Demora a se revelar. Assim como são oferecidas gradualmente as informações cruciais para a montagem do quebra-cabeças que é a trama, o drama. Sem pressa. O público não sabe mais do que aqueles que estão em cena e o atraso, a distância, são evidenciados pelo posicionamento de câmera, sempre mostrando as costas, seguindo, sendo guiada.

    Começa com um estampido, como que um aviso: “Prepare-se! Fique atenta!”. Não fiquei e acreditei que as primeiras sequências eram cheias de elipses. Cuidado! Stone joga com o tempo, pois um de seus personagens está amarrado ao passado e acaba arrastando os envolvidos para lá. De cristão só o nome desse problemático, ferido e traumatizado homem que desonra pai, cobiça a felicidade do próximo e levanta um testemunho que é verdadeiro, porém cruel. A dor e o alcoolismo são apresentados como justificativas para seus condenáveis atos, afastando-o da vilania irrealista e o caracterizando como um fraco incapaz de perceber que ser “o dono da verdade” nem sempre é louvável.

    O peso melancólico de Christian, de volta ao local em que cresceu meio que por obrigação, para ver o pai que odeia se casando novamente, contrasta o tempo todo com o brilho cheio de vida adolescente de Hedvig, cabelos rosados, perguntas na ponta da língua, sentimentos à flor da pele e uma sina: a rejeição. Enquanto Oliver é o pato selvagem, ela vive situações de patinho feio. “Não consigo olhar para você”, frase crucial do filme, faz lembrar o provérbio “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Da mesma forma, mentiras bem contadas, verdades são e é da chamada “mentira vital” que trata a obra de Ibsen, muito bem adaptada pelo estreante em longas Stone. Íntimo do texto, que já havia montado no teatro, ele conduz a nata da Oceania, elenco competente que tem Geoffrey RushSam NeillMiranda Otto e Anna Torv em papéis coadjuvantes embolados na rede de segredos.

    Injusto seria dizer que A Filha funciona apenas por repetir o que deu certo nos palcos. O diretor usa, sem exageros, assincronismo sonoro, montagem paralela, closes, paisagens, não apenas para provar que conhece as possibilidades do novo meio, mas como peças importantes do quadro que é construído, dotadas de significados identificáveis. O que causa estranheza são algumas falas de personagens mais para o fim da narrativa, quando a alta carga dramática parece levar a trama por engano de volta para o século XIX, com explicações e reações incompatíveis com os dias de hoje, algo entre o provinciano e o inacreditável. Também chega um momento em que as conexões ficam explícitas e o final precocemente se desenha de maneira completa na cara do espectador, o que não é o ideal, mas não chega a afetar o engajamento na amarga obra.

    “Acabe com o sofrimento desse bicho”, brada aquele que causou toda a dor. Se o sofrimento não tivesse sido provocado, não teria que ser encerrado e as coisas seguiriam seu curso normal. É incrível a capacidade do homem de fabricar seus maiores problemas. No fim das contas a verdade realmente liberta, só que liberdade é um conceito polissêmico.

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