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    Carnívoras
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Carnívoras

    Novela com requinte e suspense

    por Rodrigo Torres

    Em off, tela escura, Mona (Leïla Bekhti) diz que tem 29 anos, onde estudou teatro, sendo abruptamente interrompida pelo diretor do teste para um papel. Quando ele fala, a tela o visibiliza, mas não Mona, encenada pela nuca, ouvindo com atenção as instruções da cena — que é ridícula: ela tem de contracenar com um cavalo, interpretado por uma assistente, que a espanta ao resfolegar, imitando o bicho. Mona se recompõe e termina a cena com dignidade, apesar da insegurança expressa em sua face, seu corpo e seus óculos (muleta dispensável), intensificada pelo cenário insípido, todo branco.

    A sequência que continua este prólogo logo estabelece, com eficiência, a trama básica de Carnívoras: diante do fracasso de seu trabalho, Mona vai morar com a irmã, Sam (Zita Hanrot). Sua casa é um lar típico, meio desarrumado por conta de uma criança pequena, e uma bela casa de dois andares. Sam é mais nova e bem-sucedida na carreira — de atriz. Em contrapartida, está sempre ausente, pouco dorme, tem olheiras, e quando chega em casa, já tarde da noite, se dedica mais à bebida e ao cigarro do que a Manu (Bastien Bouillon), seu marido, e ao filho Tom (Octave Bossuet).

    O que falta para Mona, sobra em Sam. Em todos os aspectos: profissional, moral, conjugal, financeiro. Mona deseja a estabilidade de Sam, que anseia a liberdade da irmã. E isso é mote para uma tragédia grega típica, com sotaque francês, dirigida pelos belgas YannickJérémie Renier — isto mesmo, irmãos. E também com carreiras destoantes: mais velho, Yannick tem uma filmografia bem mais modesta que Jérémie, ator predileto dos aclamados Jean-Pierre e Luc Dardenne. Eles mesmo. Irmãos Dardenne. Produtores desse filme de abertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2018.

    Essa múltipla fraternidade criativa ajuda a entender (e torna mais instigante) as nuances da briga entre irmãs em Carnívoras. A narrativa alterna tensões sutis, relações ambíguas e elipses com situações pungentes que mantêm o thriller numa mesma cadência de ebulição iminente. Esse ritmo baixo é combinado com uma mise-en-scène elegante: movimentos de câmera soturnos e ângulos radicais exprimem a mesma estranheza que uma iluminação estourada, uma fotografia gélida compõe o estágio do casamento de Sam e Manu e a trilha sonora serve à história com perfeição, mantendo o clima de sugestão do filme. Neste sentido, aliás, tons eventuais e fortes de azul e vermelho comunicam, pontual e respectivamente, a permanência da tristeza e a premência da violência.

    É ainda curioso perceber como os tons rubros tendem a aparecer quando Mona e Sam estão atuando, o que denota uma provocação dos Renier sobre como eles veem o trabalho do ator (cujos bastidores rendem bons momentos) e uma sugestão de perigo pela qual subentende-se que o título Carnívoras poderia ser substituído, sem mudança de sentido, pela palavra “atrizes”. Assim, os irmãos estreantes na direção usam suas experiências na frente das câmeras, bem como uma composição narrativa impecável e ótimas atuações, para potencializar uma história que por vezes abusa das obviedades. Um exemplo disso é o desfecho do longa-metragem: apesar de muito previsível, a cena final compõe uma linda rima com sua cena inicial, dando sentido à história de cobiça e tragédia das irmãs Mona e Sam.

    Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês, em junho de 2018.

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