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    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
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    Um garoto e sua ovelha

    por Francisco Russo

    “O que vamos comer sem uma mulher em casa?”, pergunta o pai ao filho, pouco após a morte da esposa. A pergunta, de óbvio cunho machista, de início surpreende mas logo se revela como algo absolutamente normal dentro da realidade apresentada: uma cidade pequena e atrasada, no coração da Etiópia, cujos habitantes dão mais valor às crendices do que à ciência. Para eles, lugar de mulher é na cozinha – e ai de qualquer homem que se arriscar a pilotar um fogão.

    Mais do que simplesmente ressaltar esta realidade ainda existente em parte (significativa) do planeta, o diretor estreante Yared Zeleke constrói uma hábil história que denuncia ainda outras questões relevantes da civilização local: o desamparo e a ignorância. Tudo a partir do olhar do jovem Ephraim, o tal garoto que acabou de perder a mãe, obrigado a morar com parentes distantes em uma vila mais longe ainda da que vivia. Seu único alento é a ovelha Chuni, animal de estimação que serve como melhor amigo em uma realidade que, a bem da verdade, ninguém lhe dá a devida atenção. Só que o tio, de olho na suculenta paleta de cordeiro ambulante, sonha com o dia em que fará churrasco do animal. Começa então o calvário de Ephraim em busca de alguma saída que salve seu companheiro.

    Por mais que o enfoque seja todo no garoto, Cordeiro está longe de ser uma trama infantilizada. Até mesmo pela própria cultura local, bastante exigente em relação ao modo de se portar e aos esforços a serem feitos em nome da manutenção da família. Ephraim sabe muito bem que qualquer deslize pode lhe custar bastante caro, mas ainda assim arrisca o pescoço em diversos momentos para fazer o que acredita ser correto. A ânsia em logo conseguir o dinheiro necessário para partir, aliado à ingenuidade típica da idade, criam uma série de barreiras, todas convincentes. Este, por sinal, é um dos grandes méritos do longa-metragem: a autenticidade. A ambientação é tão bem feita que mesmo situações absurdas, como a frase que dá início a este texto, soam verossímeis - o que dá ainda mais força ao que é retratado.

    Outra questão interessante é que, por mais que o filme traga cores locais tão fortes, ainda assim é universal pelos temas abordados. A solidão extrema do garoto, impulsionada pelos olhos tristonhos do intérprete Rediat Amare, é profundamente tocante, especialmente a bela cena em que reencontra a mãe, ao seu lado. O modo como se encolhe no colo dela, como se fosse um bebê à espera da amamentação, é o retrato fiel do quão abandonado ele se sente naquele instante e que, por mais que tenha a necessária coragem de erguer a cabeça e fazer o que é preciso, ainda assim sinta falta de um carinho que não vem mais de lugar algum. Ora, tamanho desamparo não acontece apenas na Etiópia. Basta observar tantos menores abandonados existentes nas grandes cidades ao redor do planeta ou ainda aqueles que, por mais que tenham uma vida aceitável, sejam negligenciados pelos próprios pais. O sentimento é universal, por mais que a forma seja local.

    O mesmo vale para o já citado machismo e a ignorância, outros temas recorrentes no longa-metragem. Não no sentido de possuir crenças religiosas pessoais e segui-las, mas por permitir que elas te ceguem a tal ponto de impedir o vislumbre de uma solução melhor e ao seu alcance, apenas pelo fato de ter sido apresentada por oura vertente. Ora, nada mais é do que o radicalismo extremo que se vê nos dias atuais em relação à religião e à política, onde um lado não apenas precisa pregar o que acredita mas também impôr sua vontade perante o outro.

    Além de trabalhar muito bem tais fatores, o roteiro do longa-metragem ainda brilha por jamais buscar uma solução fácil – e várias delas surgem no meio do caminho, algumas até insinuando o término do filme. A fotografia também ajuda bastante a narrativa, graças à escolha de lentes que valorizam o contraste das cores, o que proporciona belas imagens. Bastante sensível, Cordeiro explora questões da cultura etíope para tratar de temas difíceis e relevantes, trazidos por um elenco bastante coeso e convincente. Ótimo filme.

    Filme visto na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2015.

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