Meritocracia para deficientes
por Bruno CarmeloUm dia, o jovem Saliya (Kostja Ullmann) começa a perceber borrões estranhos na vista. Em pouco tempo, perde 95% da visão. De Encontro Com a Vida tem na cegueira um ponto de partida, oferecendo imagens desfocadas para o espectador se sentir “como um deficiente”. Depois, pula para a degeneração da doença de Saliya. Ele opera a vista, e imediatamente desenvolve uma audição apuradíssima, um senso de olfato espantoso e um conhecimento de matemática que não possuía antes. O personagem desta comédia dramática é definido, primeiro, por sua doença e suas habilidades extraordinárias.
Segundo, ele é descrito como o portador de um grande sonho, que carrega consigo a vida inteira: trabalhar em um hotel de luxo. Não nas posições de direção, gerência ou qualquer outra. Saliya sonha em ser garçom, faxineiro, balconista, limpador de pratos. Este filho de imigrantes do Sri Lanka acredita que nasceu para servir aos outros, especialmente aos mais ricos – ele deseja integrar a equipe de um hotel luxuosíssimo, mas a deficiência se torna um obstáculo. O que faz então? Finge não ser cego. Ele decora o número de passos em cada corredor, o número de degraus nas escadas, guia-se por cheiros, descobre que o som de uma taça limpa difere daquele de uma taça suja. Tudo isso para servir da melhor maneira possível, com um sorriso no rosto, os clientes endinheirados do estabelecimento.
De Encontro Com a Vida traz uma interpretação curiosa da vida em sociedade. Longe do ideal de ascensão capitalista – o personagem não quer ter dinheiro, não quer ser importante nem poderoso – Saliya é como uma das irmãs da Cinderela que sonha em se tornar Gata Borralheira. Um conto de fadas ao contrário. Seu maior dilema é se assumir deficiente, fazer o “coming out cego”: ele precisa revelar à sociedade algo que a princípio seria impossível esconder. Mas a fábula dirigida por Marc Rothemund interpreta a cegueira como fantasia, uma questão de força de vontade: Saliya pode se integrar e fazer exatamente a mesma coisa que todos os outros. Ele tem à disposição empregos específicos para deficientes visuais, mas prefere decorar a ordem dos talheres num hotel que não contrata cegos. Qualquer um pode se inserir, sugere o filme. Basta se esforçar.
O que sobressai desta comédia é a defesa da meritocracia imposta a pessoas em dificuldade. Por trás das boas piadas e do ritmo agradável, regado a músicas pop e gags leves (a limpeza dos espelhos, o carro de verduras parado no corredor), o roteiro sugere que os deficientes devem se adequar ao mundo, e não o contrário. Ele coloca sobre as pessoas em desvantagem a responsabilidade da adequação, sem cogitar que a sociedade poderia ser encarregada da inserção igualitária. Por isso, a jornada de Saliya é mostrada como um périplo sádico de provações, humilhações e dificuldades absurdas – quando a mãe divorcia do pai, um tipo inacreditavelmente vilânico, o rapaz cego deve pagar as contas da casa com dois empregos, mesmo que a mãe e a irmã adulta, ambas em perfeita saúde, sejam plenamente capazes de trabalhar. Mas é preciso tornar o protagonista um mártir, mostrar como ele luta. Saliya se torna ainda melhor, aos olhos da narrativa, porque sofre.
Esta ideologia é adocicada pela mensagem sobre a “importância dos sonhos”. Saliya sonhava em servir, e arriscou sua saúde, sua vida e a de outros – vide a inacreditável cena com o garotinho no parque – para ter a oportunidade única de trabalhar no meio do luxo que ele não pode ver, e ao qual não tem acesso. Mas se trata de um sonho, de força de vontade, de superação de obstáculos. E também de amor – vide o romance coadjuvante dentro da trama, menos importante que o bromance com o colega Max. No entanto, tudo dá certo, todos riem, se divertem, se apaixonam. Saliya cai e se levanta, tropeça várias vezes e retorna ao trabalho, corta o dedo mas bota esparadrapos e retorna. Ele é humilhado, e pede pra voltar. Assim, domesticado ao extremo, ele acredita que, pelo hábito da submissão, transformará seus algozes em amigos. Que estranho exemplo de vida.