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    Castanha
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Castanha

    Filme sintoma

    por Bruno Carmelo

    Existem diversas maneiras de se fazer um filme realista: seguindo o personagem com uma câmera na mão, simulando cenas naturais, capturando cenas inesperadas, representando o real através de metáforas ou símbolos. A docuficção realista Castanha opta por registrar a banalidade do cotidiano de João Carlos Castanha. Este homem de 52 anos de idade passa os dias conversando com a mãe, fumando, falando com amigos ao telefone, dormindo. À noite, apresenta-se como transformista em casas noturnas, depois limpa a maquiagem, volta para casa e dorme. No dia seguinte, repete as mesmas ações.

    Muitos diretores já transformaram o banal em algo especial ao se focarem nos conflitos familiares (como Richard Linklater no recente Boyhood), sociais (como os irmãos Dardenne em Rosetta) ou políticos (como Ken Loach em Mundo Livre). O documentário frequentemente valoriza a banalidade, às vezes por um olhar afetuoso e pessoal (caso dos filmes nacionais feitos por familiares dos biografados) ou um olhar crítico e engajado (caso dos documentários sociológicos ou etnográficos). Já Castanha se apropria do banal… de modo banal. Durante a maior parte da projeção, não há conflitos na vida deste homem, não há confronto de vontades, objetivos, conquistas, apenas um deslocamento repetido através dos mesmos espaços (caso, carro, casa noturna) e dos mesmos tempos (casa de dia, boate à noite).

    Com seu ritmo voluntariamente arrastado e sua recusa em fornecer contexto ao personagem, Castanha transforma-se em um filme hermético, daqueles que acreditam na nobreza da imagem em detrimento da produção de sentido. Talvez não seja absurdo comparar esta obra a um filme radicalmente oposto, mas simétrico, também em cartaz: a produção bíblica Questão de Escolha. Enquanto o filme religioso quer ser apenas conteúdo, deplorando a forma, Castanha deseja ser apenas forma, deplorando o conteúdo. São obras de pensamento extremista e quase caricato sobre o cinema: um deles acredita que o cinema serve apenas para ensinar, e o outro acredita que o cinema deve apenas fornecer material para os sentidos. Nenhum dos dois busca uma convergência entre forma e conteúdo, com um servindo ao outro, se adequando ao outro, enriquecendo o outro.

    Depois de aproximadamente uma hora da rotina do personagem - muito bem filmada, sem dúvida, mas em ritmo lânguido e pouco empolgante - surge um conflito específico, relativo ao sobrinho de Castanha, um dependente químico potencialmente perigoso, capaz de desestabilizar a rotina doméstica do artista e de sua mãe idosa. O cineasta Davi Pretto faz um bom trabalho ao associar este adolescente aos problemas internos do próprio Castanha, como uma metáfora pessoal e visual - são belas as cenas do rapaz na rua, ao longe, e de sua sombra dentro de casa. Neste momento, o filme busca uma maneira de representar poeticamente a essência de um homem até então reservado à sua exterioridade.

    Entretanto, depois de atingir bons momentos, a história não sabe muito bem quando terminar, oferecendo vários finais possíveis antes de finalmente apresentar o seu plano final. Apesar de sua curta duração, Castanha se arrasta, parece indeciso sobre o seu ritmo, sua estrutura narrativa. Pelo menos, através do registro distanciado do cotidiano, o diretor consegue conferir naturalidade a um homem homossexual e transformista, despindo-o do fetiche da marginalidade e do olhar moralista. O estilo de vida do protagonista é retratado com uma simplicidade importante em uma profissão tão carregada de preconceitos.

    Mas ao final da projeção, o espectador ainda sabe pouco sobre Castanha, sobre sua mãe, sobre seus medos, seus objetivos, seus talentos. A montagem oferece apenas cenas muito curtas, impedindo que se assista aos números completos na casa noturna, ou se ouça a uma conversa inteira no telefone. No instante em que a cena está prestes a se desenvolver, ganhando sentido e conflitos, a montagem censura-o, afim que nada impeça a banalidade de permanecer idealmente estética, não narrativa, como um fim em si mesma.

    Apesar de suas evidentes qualidades, Castanha funciona um sintoma do filme de autor brasileiro contemporâneo, reunindo uma porção de elementos e linguagens recorrentes nestas obras. Antes, a metalinguagem era tida como um dos principais sinais de inteligência e complexidade, aqui ela se une à quase obrigação de combinar ficção e documentário, evitando luzes muito artificiais, priorizando diálogos, valorizando a imagem acima do sentido, acima do som, acima da mensagem. Na época em que o cinema brasileiro constrói a sua indústria, com uma porção de comédias horrivelmente lineares e previsíveis, o cinema alternativo focado no público de festivais constitui-se em oposição simétrica, gabando-se da proximidade do real, do desinteresse kantiano, do prazer da subversão e da frustração das expectativas.

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