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    Um Dia Perfeito
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Um Dia Perfeito

    À margem da guerra

    por Bruno Carmelo

    Um cadáver humano boiando dentro de um poço. A primeira imagem de Um Dia Perfeito sintetiza o conflito principal e dita o tom tragicômico da história. O corpo é obeso, a corda à disposição é frágil, e não se sabe como retirá-lo antes que toda a água seja contaminada. De um lado, estão os habitantes falando uma língua dos Bálcãs (no caso, o bósnio, embora a região nunca seja especificada), do outro lado, encontra-se uma equipe de ajuda humanitária internacional tentando auxiliar os habitantes em período de guerra.

    O filme espanhol poderia se transformar num libelo humanitário fervoroso, como Os Cavaleiros Brancos de Joachim Lafosse. Mas o teor é muito mais ameno, e de certa maneira, mais inteligente em seu poder de sugestão. Primeiro, estamos numa comédia de humor negro: o que interessa ao diretor e roteirista Fernando León de Aranoa são os diálogos cotidianos, as brigas entre patrões e empregados de organizações humanitárias, os mal-entendidos, a ironia decorrente de situações absurdas – um cadáver de vaca no meio da estrada, uma loja de cordas que não vende cordas. Fala-se até demais neste filme ultra roteirizado, cuja montagem se recusa a interromper as cenas antes que o diálogo tenha esgotado todas as farpas possíveis.

    Segundo, a guerra mencionada por vários personagens não é vista em tela. As imagens são feitas perto das zonas afetadas, algumas horas depois de um ataque ou tragédia. A escolha é excelente por fazer trabalhar a imaginação do espectador: os cadáveres são mostrados apenas em parte, as minas não explodem, as armas não disparam. Mas o perigo é iminente. A dilatação do tempo e o anúncio de uma catástrofe garantem o suspense de uma narrativa de ritmo essencialmente lento. A reincidência de absurdos acaba trazendo suas virtudes políticas: aos poucos, a guerra é percebida menos como um ato de maldades isoladas do que como a consequência inevitável da concentração de poder e do descaso das autoridades.

    Apesar de possuir cerca de seis personagens principais, Um Dia Perfeito toma o tempo de desenvolver muito bem a personalidade de cada um, indo do cinismo extremo de B (Tim Robbins, ótimo no papel) à ingenuidade da novata (Mélanie Thierry), passando pelo agente de segurança amargo (Benicio Del Toro) e pela burocrata da ONU (Olga Kurylenko), mais interessada em cumprir ordens do que analisar os casos. Enquanto cada ator se diverte com o jogo de cena e as trocas verbais – levando à impressão de que o roteiro também funcionaria bem no teatro – o conflito se desenvolve com pequenas metáforas da guerra. É surpreendente o significado que Aranoa consegue extrair de episódios envolvendo uma casa abandonada, uma bola e uma corda.

    A ironia do projeto é retratada igualmente na trilha sonora, com direito a canções de Marilyn Manson em oposição ao cenário dos Bálcãs. Talvez o ritmo se arraste em alguns momentos, a exemplo da conversa noturna entre dois ex-namorados, mas de modo geral, o filme apresenta uma astúcia ímpar em seu retrato da guerra. Aos poucos, Aranoa consegue retratar as principais consequências humanas e políticas de um conflito armado, sem filmar uma única gota de sangue. Quando o cinema tem vontade de mostrar cada vez mais, a boa direção pode ser aquela que sabe o que esconder.

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