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    Cidade Cinza
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Cidade Cinza

    Os donos de São Paulo

    por Bruno Carmelo

    Desde a primeira imagem, Cidade Cinza mostra uma vista aérea de São Paulo, com uma infinidade de prédios por todos os lados. Os grafiteiros conhecidos como Os Gêmeos comentam o caos da cidade e a verticalização da metrópole, enxergando nas paredes grafitadas uma vitória contra o concreto. O documentário não demora para assumir a posição de que a cidade é feita para os moradores, e não para políticos ou empresas. Por isso, as manifestações nas paredes de prédios e casas deveriam ser vistas como uma solução, e não como problema ao panorama urbano.

    Os diretores Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo conversam com alguns dos maiores grafiteiros da cidade, como os Gêmeos, Nunca e Nina, e colhem depoimentos preciosos de cada entrevistado. Os artistas afirmam que as pinturas representam uma resposta ao caos da própria cidade, além de permitirem se sobressair ao anonimato da multidão. Eles mostram o orgulho de ver seus nomes aparentes, contribuindo à transformação plástica dos bairros onde cresceram. Estas falas transparecem uma relação de amor e ódio com São Paulo: detesta-se o caos e o crescimento desenfreado, mas é ele que estimula a criatividade dos pintores; repudia-se a prática de políticos que censuram o grafite, mas estas políticas são o motor da rebeldia essencial à cultura hip hop. Paradoxo: a arte do grafite combateria o caos, mas só existiria graças a ele.

    A questão política por trás da legitimidade do grafite ganha episódios curiosos no documentário. Os diretores acompanham funcionários terceirizados pelo governo, que apagam os desenhos nas paredes seguindo critérios totalmente aleatórios (“Este aqui é arte, mas aquele ali, meio borradinho, não é não”). Estas cenas devem ser relativizadas, afinal, representam um único grupo de funcionários de Pinheiros (talvez outros sejam mais criteriosos, quem sabe?). Mesmo assim, as aparições do ex-prefeito Gilberto Kassab e de Andrea Mattarazzo geram um momento importante e representativo das políticas urbanas. Para inaugurar um grande painel de 700 m, os dois políticos chegam ao local e, com claro desconforto, elogiam o trabalho dos grafiteiros. Quando questionados sobre outros trabalhos apagados pelos muros de São Paulo, eles dão as costas, sorriem para as câmeras e vão embora. Preocupados com a neutralidade política, os cineastas lembram que esta política intolerante ao grafite persistiu tanto no governo PSDB quanto no governo atual do PT.

    Mas talvez a discussão mais interessante trazida por Cidade Cinza diga respeito à própria noção de arte. Ninguém sabe muito bem como defini-la, e portanto como detectá-la – sejam grafiteiros, moradores ou representantes eleitos. Depois de mostrarem seu trabalho em vários países e galerias de arte, Os Gêmeos dizem que fazem algo “além do grafite”, que já seria “arte” – estabelecendo uma separação e hierarquia entre os dois. Já os diretores mostram a evolução dos traços, a pesquisa de formas, cores e texturas, usando os exemplos internacionais para fornecer provas de que aquilo é, sem dúvida, uma manifestação artística. Mas logo depois outro grafiteiro distingue os belos painéis patrocinados das pichações espontâneas e livres que eles também praticam, e que se assemelhariam a “10 minutos de orgasmo”, ou seja, um prazer fluido, irrefletido e individual. Não se sabe ao certo quando o “bom grafite” se torna arte, e quando o “mau grafite” transforma-se em pichação.

    O documentário explora muito bem a confusão entre arte e cultura, entre expressão pessoal e “vandalismo” (para usar uma palavra tão em voga nos dias atuais). No entanto, Mesquita e Valiengo não propõem uma maneira de sair deste impasse, não defendem um ponto de vista sobre o assunto. Os cineastas tampouco questionam a origem de tanto cinza na cidade, ou pesquisam as primeiras leis contrárias ao grafite. O lado institucional (prefeitos, políticos responsáveis pelas subprefeituras) é pouco escutado, ficando em clara desvantagem em relação aos artistas. Cidade Cinza escolheu o seu lado, como tinha o direito de fazer, e optou por uma abordagem mais fraterna e próxima (até os pais dos Gêmeos são entrevistados) ao invés de uma forma de cinema reflexiva ou militante.

    O documentário acaba fornecendo um panorama rico do grafite, do caos da cidade e da dificuldade – tanto dos artistas quanto dos políticos – em delimitar a exploração dos espaços urbanos. Este filme pode não ser um notável trabalho histórico ou político, mas é de grande valor cultural, além de ser simbolicamente importante ver os grafiteiros, figuras marginais em São Paulo, transformados em protagonistas do discurso sobre a cidade.

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