Tabu: Críticas

Há algo de inquietante sobre a aura que cerca o novo filme de Miguel Gomes. Tabu, que é praticamente dois filmes em um, conta uma história dentro de outra história de forma tão intensa que somos capazes de se envolver tanto em uma quanto em outra. Porém, evidentemente, para entendermos a segunda, precisamos ter conhecido a primeira.

Os feitos do diretor (e autor) não param nessa divisão visionária. A fotografia é um primor, tal que o filme é filmado, principalmente em seu segundo seguimento, para dar a impressão de que estamos vendo um filme feito nos anos 40 ou 50. E a complacência do filme com o formato que está contando, em todos esses sentidos, é enorme.

Uma vez que tecnicamente, Tabu apresenta um visual nunca menos que impactante, Miguel Gomes usa e abusa de técnicas de direção durante o filme inteiro. Aliás, é necessário elogiar a edição do filme, assinada pelo proprio diretor e seu editor, Telmo Churro, que é soberba. Na primeira parte, por exemplo, podemos ver fusões de cenas com uma precisão absurda, como na cena em que Pilar observa o cartão-postal com o asilo em que Gian Lucca morava atualmente, e, num piscar de olhos, podemos vê-la dentro do proprio ambiente que observava. Ou um outro recurso maravilhoso na cena em que vemos Aurora no hospital, e, enquanto a senhora achava que estava na África (explica-se o porque disso na segunda parte), a câmera faz questão de enquadrá-la sozinha nos frames que viriam a seguir, e, no instante em que descobre que não está onde pensa que está, podemos realmente ver que ela na verdade encontra-se em um hospital, deitada numa maca.

A primeira parte do filme, aliás, intitula-se "Paraíso Perdido" numa ironia sublime que só podemos constatar tendo visto o longa em sua totalidade. O título refere-se, principalmente, à história de Aurora. Perdida. Um paraíso que ela própria deixou escapar. O que é de se surpreender, no entanto, é que essa parte seja bastante bem humorada, com tiradas e gags interessantes e apelidos inspirados. Ainda que a inquietude esteja sempre presente, somos impelidos a querer saber mais e mais acerca daquelas mulheres que estão nos sendo apresentadas. E tanto Aurora quanto Pilar têm total protagonismo nessa história. Aurora como personagem, Pilar como autora.

O distanciamento dos personagens sempre se mantém presente, de certa forma. Nos importamos pelo que eles podem nos contar, mas não com eles exatamente. Tanto que é por isso que Aurora sai da história e o choque nunca chega. Pelo contrário. E é belíssimo perceber o cuidado com a montagem na transição da Parte 1 para a Parte 2. E o movimento da câmera: Pilar, Gian Lucca atualmente, Aurora do passado.

A importância das duas personagens principais intensifica-se na segunda parte, "Paraíso", que é bem o contrário do que o filme estava nos acostumando até então. Melancólico, esse segmento do filme concentra-se na história passada de Aurora, sendo contada por Gian Lucca para Pilar, logo após o enterro da idosa. As imagens que vemos a seguir, Gomes faz questão de ressaltar, não pertencem à narrativa do velho, mas sim às projeções criadas pela mente de Pilar. Não à toa os diálogos são inexistentes, afinal, a pessoa que está imaginando toda aquela história sequer viveu aquelas emoções. É tudo imagem, som, imagem, som... falta de som. O som que predomina é o dos pássaros, da natureza, do vendo batendo nas árvores, coisas que Pilar poderia e consegue criar dentro de sua mente. E claro, nós entramos em sua mente e vemos a imagem, ouvindo tudo o que ela está ouvindo da boca de Gian Lucca.

O problema, e talvez único, é que somos transportados dos tempos mais atuais para uma outra época, um novo tempo e espaço para que saibamos o que ocorreu antes do que estávamos vendo até então, e o "choque da diferença" que uma parte tem em relação a outra pode causar desconforto em alguns cinéfilos, o que provavelmente resulta em um certo desinteresse acerca da segunda história, taxada por alguns, erroneamente ou não, como "chata". Mesmo que a diferença seja essencial para contar a história da maneira que Miguel Gomes quer contá-la.

O que, em minha opinião discordante, faz desse filme uma peça rara no Cinema autoral. Principalmente quando a direção sempre concisa de Gomes, ao se valer muito bem da narração que está acontecendo, intensifica os olhares e gestos para demonstrar exatamente o que quer.

Por fim, Tabu é um filme sobre como uma história pode sobreviver ao tempo por memórias ou não. Ou até mais que isso, talvez seja um filme sobre contextos históricos, que assim como o brasileiro "O Som Ao Redor", tente retratar por meio de alguns poucos personagens o que está/estava sendo vivido naquele momento e naquele local em questão. E o crocodilo, como peça-chave presente em todas as passagens, esteja sempre ali, onipresente, a observar seus personagens, como uma ode ao Cinema (presente no filme, diga-se de passagem), que permite sermos agraciados com obras muito bem feitas. Como essa.

A excelente fotografia negativa em um formato de tela já em desuso e a saudosa trilha sonora potencializam toda a sensação de nostalgia. Tabu é um filme simples, de desconcertante originalidade, mas de uma profundidade magistral. Um belo trabalho sobre um dos mais interessantes cineastas contemporâneos. Um dos melhores filmes do ano!

Nem sempre conseguimos afastar nosso lado emocional tão facilmente. Como este filme homônimo do Tabu realizado por F.W. Murnau em 1931 diz, o coração é o músculo mais insolente de nossa anatomia. Em determinados momentos nem algo divino e soberano consegue extirpar as mais profundas emoções encontradas em seu interior. Em uma linda homenagem ao cinema, com uma história muito bem contada, utilizando recursos cinematográficos, este filme que é triste e melancólico não deixa de ser corajoso e bonito como a luz da Aurora.
Aurora interpretada por Laura Soveral adulta e por Ana Moreira jovem (tem esse nome em homenagem ao filme de F.W. Murnau Aurora), é uma senhora portuguesa que vive em Lisboa com uma ajudante chamada Santa (Isabel Cardoso). Esta é paga pela filha de Aurora que vive no Canadá e que não quer saber muito dela. Aurora ainda conta com as ocasionais ajudas de sua vizinha Pilar (Teresa Madruga). Ela guarda um segredo que a marcou por toda sua vida.
Miguel Gomes a cada obra que realiza chama os holofotes para si. Em Tabu mostra que entende como ninguém de cinema ao contar uma história de amor ousada e com uma justa homenagem ao diretor F.W. Murnau, importante realizador cinematográfico. Participando praticamente de todas as etapas desse filme, Miguel Gomes acaba realizando este filme de forma autoral. Optando por uma fotografia preto e branco com grandes contrastes de claro e escuro o cineasta acerta por retratar uma história que não tem muito espaço para as cores da vida. Esse contraste enaltece a atmosfera do passado de Aurora. Utiliza uma razão de aspecto 4x3, como eram os filmes antigos já que remete a um filme de 1931. O tamanho do quadro também é importante por contar uma história que sufoca os protagonistas em que suas vidas são fechadas, sem espaços para ir além do ponto onde chegaram. Com uma narrativa que mescla entre o cinema falado e o cinema mudo o filme mais uma vez acerta. Além de uma homenagem essa combinação acaba sendo harmoniosa.
Aurora é umas das personagens mais amarguradas e tristes da história do cinema. Quantas decisões tomamos, ou acabam sendo tomadas por outros e temos que enfrentar o coração apertado por caminhos que iremos percorrer contrários ao coração. Tantos ensinamentos dizem sobre o lado de tomar decisões racionais, utilizando mais o cérebro do que o coração. Mas a realidade é que quando o lado emocional toma uma proporção maior que o racional dificilmente consegue-se tomar decisões que não sejam levados pelo coração e as vezes essas decisões mais racionais tem que ser tomadas pelo outro. Aurora desde o início se mostra uma mulher mais tocada pelo lado selvagem (sua mãe morreu no parto, seu pai viajou para longe, ela desenvolveu a caça) assim suas decisões só poderiam ser tomadas da forma como foram, sem medir consequências.
O filme também é dividido em duas partes como o Tabu de Murnau, porém os títulos são invertidos. Enquanto Murnau inicia com Paraíso, Miguel Gomes inicia com Paraíso Perdido e na segunda parte isso é invertido. Na segunda parte o filme tem umas das melhores narrações já realizadas no cinema. Fica a cargo do espectador chegar a conclusões sobre o que cada título desse significa no filme. Por fim acrescento como destaque a trilha sonora que possui até música dos Ramones.
Um filme que além de contar uma linda/triste história de amor, nos oferece uma obra prima em forma de imagens.