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    Vidas ao Vento
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Vidas ao Vento

    Queridas máquinas de guerra

    por Bruno Carmelo

    O pôster desta animação mostra um homem beijando uma pintora em um campo aberto. A imagem é poética, assim como o título brasileiro (e também o título original, “O vento se ergue”, extraído de um poema de Paul Valéry), mas é importante avisar que este aspecto leve e romântico corresponde a uma única parte do filme – no caso, a parte menor e menos importante.

    Vidas ao Vento é uma biografia animada de Jiro Horikoshi, grande engenheiro aeronáutico japonês, responsável pelos mais avançados aviões lançados na Segunda Guerra Mundial. A narrativa acompanha o personagem de maneira clássica e linear: infância com sonhos de aviação, primeiros estudos para se tornar engenheiro, primeiras decepções na profissão, descoberta do talento excepcional etc.

    Para os fãs do animador Hayao Miyazaki, esta história pode ser ao mesmo tempo um prazer e uma decepção: um prazer porque o traço do autor continua belo, fluido, capaz de conferir muitos detalhes às peças metálicas do avião, sem precisar buscar o ultrarrealismo das animações atuais em 3D. Uma decepção, no entanto, porque diante de uma filmografia tão metafórica, onírica e fantasiosa, Vidas ao Vento é um filme surpreendentemente pouco criativo, concreto e rígido.

    A história dedica pelo menos vinte minutos ininterruptos a discussões sobre a aerodinâmica das peças, a evolução dos rebites, a acoplagem das roldanas, a angulação do design, a velocidade dos motores. O diretor é visivelmente apaixonado por seu tema, e parece ter feito uma pesquisa histórica e visual aprofundada, mas ilustra esses itens com o peso de uma aula de mecânica para iniciantes.

    Até o sonho, elemento máximo do escapismo, é rebaixado ao patamar da realidade: quando o pequeno Jiro sonha em encontrar um grande construtor italiano, ambos sobem nas asas de um avião em movimento, mas o construtor avisa: “Isso não é possível na vida real, só podemos subir porque estamos em um sonho”. Ou seja, mesmo na fantasia, os personagens estão conscientes da distância que os separa do real.

    Essa áspera concretude é amenizada por uma convencional história de amor, marcada por elementos como amor à primeira vista, donzela à beira da morte, sacrifícios e martírios. Mas Miyazaki consegue extrair momentos de grande delicadeza da relação entre Jiro e Naoko, como a cena em que o engenheiro passa a noite inteira desenhando um novo protótipo, enquanto uma de suas mãos é segurada pela esposa doente, que dorme ao seu lado. A representação das emoções e dos humanos é infinitamente mais bela do que a representação das máquinas.

    Mas talvez o ponto mais complicado e questionável em Vidas ao Vento seja a sua relação com a guerra. Ora, o protagonista dedica a sua vida inteira a construir aviões usados pelo exército japonês, concebidos para matar pessoas, queimar cidades e defender certa ideia de nação. Tanto o diretor quanto o personagem se eximem de qualquer responsabilidade moral e ética neste trabalho: Jiro afirma, ingenuamente: “Eu nunca quis fazer aviões de guerra. Só queria fazer belos aviões”. Depois, o roteiro esquece essa questão e passa a vangloriar o talento de Jiro como um puro esteta.

    Miyazaki prefere ver na história de Horikoshi uma alegoria do vento, do progresso, da força de vontade de um garoto com talento excepcional. Mas esta também é uma história de um construtor de guerra, que se transforma na peça fundamental para a política japonesa dos anos 1920-1930. E falar desta história sem citar o contexto, a sociedade, ou a guerra em si, constitui uma omissão questionável.

    PS: Hayao Miyazaki afirmou que Vidas ao Vento é o seu último filme como diretor. Desde então, críticos do mundo inteiro passaram a analisar a obra como um testamento, um resumo da carreira do cineasta antes da aposentadoria. Por isso, as frases de apreciação foram ainda mais elogiosas, hiperbólicas, como se fosse preciso amar Vidas ao Vento para amar Miyazaki. A crítica, às vezes, funciona de maneira curiosa. 

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