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    Crazy Horse
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Crazy Horse

    O avesso do luxo

    por Bruno Carmelo

    O documentarista Frederick Wiseman construiu a sua carreira através da incursão em instituições muito específicas: hospitais psiquiátricos, delegacias de polícia, o exército americano, a previdência social, companhias de balé, academias de boxe... O mecanismo sempre foi o mesmo: o cineasta observa os bastidores pacientemente, sem captar depoimentos, nem incluir narradores. Sua intenção é intervir o mínimo possível na realidade registrada, encarregando a montagem de representar o discurso do filme. Wiseman sempre foi fascinado pelos mecanismos, como uma criança que desmonta um brinquedo para descobrir as peças que o fazem funcionar.

    Depois de analisar grupos profissionais dominados por regras muito precisas, ele adentra uma esfera cujos bastidores são pouco conhecidos: o cabaré parisiense Crazy Horse, autointitulado “maior espetáculo de nus da Terra”. A casa de eventos propicia um show elegante e kitsch, composto por belas mulheres seduzindo seus espectadores com contorcionismos e figurinos sugestivos. O cabaré se esforça para ser considerado um show “de bom gosto”, menos excitante do que “artístico”. Por isso, o respeitado coreógrafo Philippe Decouflé é contratado para criar um novo espetáculo, ainda mais chique, excessivo, cheio de sobreposição de cores, luzes, peles de onça e bolinhas coloridas projetadas sobre os corpos das meninas.

    O espectador que esperar uma exploração soft porn dos corpos femininos ficará muito decepcionado. Como sempre, Wiseman está interessado apenas nas relações de poder entre patrões e empregados, investidores e dirigentes, artistas e público. O diretor observa atentivamente as restrições orçamentárias do lugar, as alternativas encontradas para apresentar uma aparência chique pelo menor preço possível, as diferenças criativas entre Decouflé e seus assistentes sobre a duração de um número musical, as luzes usadas ou os gestos das garotas. As próprias dançarinas não ganham nome nem voz, elas são apenas um exército de corpos destinados a cumprir ordens – semelhantes, nesse sentido, aos soldados, policiais e bailarinas que o cineasta filmou anteriormente.

    Tampouco existe em Crazy Horse uma crítica à objetificação do corpo feminino, ou às relações capitalistas envolvendo o desejo sexual. O olhar do cineasta é puramente sociológico, buscando compreender sem julgar. Wiseman concentra-se acima de tudo nos momentos que tornam a profissão artística algo tão difícil de ser compreendido pelo capitalismo: quando Decouflé, irritado, grita que não consegue acelerar seu trabalho, porque “está fazendo arte” e “não se pode apressar a inspiração”, fica evidente o abismo que separa a ideia de performance comercial e performance artística. Como qualquer outro empreendimento cultural, o Crazy Horse luta entre a concepção abstrata de talento e a concepção concreta de lucro.

    O documentário termina por apresentar um olhar divertido e muito aguçado sobre as noções de luxo, espetáculo, desejo e elegância. Por revelar de maneira tão fria e direta a construção da sedução, ele é pouquíssimo excitante. O maior interesse do empreendimento de Wiseman vem do contraste de perspectivas, com um método rígido e preciso aplicado ao caos artístico, um olhar frio aplicado a um exército de seios, bundas e rostos que se esforçam para suscitar o desejo. Embora apresente números completos do espetáculo, o cineasta estabelece uma distância considerável entre o público do cabaré e o espectador de seu filme. Afinal, é muito diferente assistir à execução de uma coreografia ao vivo e assistir ao mesmo número depois de descobrir todas as brigas, investimentos e treinamentos necessários à sua realização.

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