Anna Karenina (Anna Karenina, 2012)
Como contar uma história que já foi lida por milhões de pessoas ao redor do mundo? Como reinventar um enredo que já ganhou quatro outras versões para o cinema (1935, 48, 85 e 97)? Como atrair um público jovem, maioria entre frequentadores de cinema, para assistirem a filme baseado em um livro russo de 1877? Resposta: ousando-se. E foi exatamente assim, ousando que Joe Wright (‘Desejo e Reparação’ e ‘Orgulho & Preconceito’) leva ao cinema mais uma versão do romance histórico de Tolstói, Anna Karenina.
Dono de um currículo que conta com outras duas obras baseadas em ícones da literatura mundial, Wright optou por ambientar a Rússia imperial do século XIX no interior de um velho teatro objetivando com isso explorar o conceito da encenação de rígidos papéis no interior da sociedade russa da época, papéis estes encenados como em uma peça teatral.
Concepções artísticas, principalmente no que tange a cenografia, que fogem do lugar comum, fascinam amantes da 7ª arte como, por exemplo, ‘Dogville’ no qual toda a trama se passa em um galpão com marcações no chão que identificam os cenários. A coragem em se enveredar por tais escolhas não pertence, obviamente, a todos os cineastas, e mais raro ainda é o talento para a condução de tais projetos. A possibilidade de tais tramas ficarem subjugadas às suas inovações e por isso possam se perder em si mesmas é grande e facilmente diretores caem em armadilhas de seus próprios conceitos. Aos menos acostumados ou mais puritanos a estética pode incomodar de início, mesmo que não exatamente por ela em si, mas, sobretudo porque prejudica um pouco a identificação dos personagens. No entanto à medida que o tempo passa, com o aprofundamento da trama, o espectador é levado para dentro da história e ganha familiaridade com os personagens.
Essa abordagem estética pouco usual foi, obviamente, alvo de diversas críticas, porém a maior parte foi dirigida a uma possível falta de profundidade com que a história é tratada e superficialidade no trato dos personagens. Mas se aprofundar é transformá-lo em uma historinha água com açúcar e arrastada de outras adaptações é fácil optar pelas inovações que ‘rejuvenescem‘ o enredo e a tornam mais acessível principalmente àqueles pouco afeitos a filmes baseados em romances históricos. Cabe levarmos em consideração que a complexidade dos diversos personagens, só plenamente captada no livro, é impossível de ser traduzida em duas horas e cair na comum tentação de estender a história por mais meia hora poderia torná-la cansativa.
A caprichada produção rendeu indicações em categorias técnicas (Direção de Arte, Figurino, Maquiagem, etc) nos principais prêmios do cinema em 2013. Foram quatro indicações ao Oscar, 6 indicações ao Bafta (o Oscar inglês) e duas indicações vencedoras ao Critics Choice Awards, além de outros mais. Nada mais justo, apesar de ter merecido melhor sorte em outras categorias como direção, por exemplo, afinal não é todos os dias que somos brindados com uma das mais belas cenas já realizadas no cinema: o baile promovido pela família de Kitty. Tudo é impecável: cenário, música, atuação e figurino formam um conjunto de plasticidade e beleza desconcertantes e de grande carga dramática. Ficam evidentes os sentimentos que envolvem todos os personagens sem que uma fala seja proferida.
Parceira de Joe Wright em ‘Orgulho e Preconceito’, pelo qual foi indicada ao Oscar e Globo de Ouro em 2006, e em ‘Expiação’, a bela Keira Knightley transmite um ar jovial, moderno e sensual à Anna. Sua personagem mantém um casamento frio, porém sem grandes ou claras demonstrações de tristezas ou frustrações. Seu descontentamento maior é com o tratamento dado ao filho pelo seu marido, o oficial Alexei Karenin interpretado por um corretíssimo Jude Law (‘Closer’ e ‘Inteligência Artificial’) de emoção contida, quase imperceptível, mas que no olhar e na contrição dos gestos passa seus sentimentos. O mundo de Anna muda completamente quando em uma viagem de trem conhece o Conde Vronsky (Aaron Taylor-Johnson de ‘Kick Ass’) e entre eles nasce uma enorme paixão que desencadeia uma série de conseqüências. O jovem Taylor-Johnson, talvez seja o ponto fora da curva no que diz respeito às interpretações. Até convence em um papel de galã, o que é surpreendente considerando seu papel em ‘Kick Ass’, porém falta certa gana, força em seu Vronsky. O caso entre os Anna e o Conde irá repercutir em outros personagens da trama como Kitty, (Alicia Vikander de ‘O Sétimo Filho’), futura noiva de Vronsky e Konstatin Dimitrivich (Domhnall Gleeson de ‘Bravura Indômita’) apaixonado por Kitty, mas que se frustra ao saber que sua amada já está prometida.
O filme conta ainda com Stiva Oblonsky (Matthew Macfadyen de ‘Os Três Mosqueteiros’) irmão de Anna, que apesar de ser mais um a representar a sociedade machista, acaba por figurar como um quase alívio cômico dentro da trama. Sua esposa, Daria Dolly (Kelly Macdonald de ‘Onde os Fracos não Têm Vez’), no entanto sofre com as traições do marido, porém conformada e acuada pela moral da época o perdoa sempre. Em pequena participação, porém importante, como irmão de Konstatin, temos David Wilmot (de ‘Rei Arthur’) e sua ‘esposa’ Masha, a atriz indiana Tannishtha Chatterjee.
O caso extraconjugal de Anna acaba por tornar-se evidente diante dos gestos e olhares que o casal troca entre si. Exposto diante da opinião pública Alexei Karenin, pressiona Anna a terminar seu caso usando o filho do casal ameaçando-a de não poder vê-lo. Apesar da pressão, a paixão fala mais alta e Karenina sai de casa, porém o divórcio não é concedido pelo marido. A figura de Anna é humilhada. A sociedade machista e moralista a faz questionar suas escolhas e a si mesma: abraçar seu amor incontrolável e aceitar o desprezo e escárnio dos outros ou abrir mão de seus sentimentos em prol de encenar seu papel de mãe zelosa e esposa submissa. Ao final o papel que Anna escolhe a liberta, mas reflete a opressão, o preconceito e o moralismo que por vezes teima em bater à porta de nossa sociedade do século XXI, evoluída, esclarecida e hipócrita.
Ao final da projeção fica a sensação de uma história que apesar de densa, passa pelos seus cerca de 120 minutos com leveza. A abordagem inteligente sopra modernidade sobre as páginas de Tolstói e pode recolocá-lo na vanguarda da literatura mundial, lugar de onde nunca deveria ter saído.