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    O Vendedor
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    O Vendedor

    O mal-estar na sociedade

    por Bruno Carmelo

    Durante pelo menos uma hora de projeção, o espectador pode sentir que há algo muito grave acontecendo em O Vendedor, sem saber ao certo o quê. A pacífica vida cotidiana do nosso protagonista, Marcel Lèvesque, se desenvolve dia após dia, sem uma mudança sequer, mas sua filha, os colegas de trabalho e os outros habitantes da cidade parecem olhá-lo com preocupação. Sem entender como nem por que razão, sabemos que estamos sendo preparados para um acontecimento trágico.

    Marcel é vendedor e, assim sendo, vende. Ele não é definido por sua nacionalidade, seu gênero ou seus gostos, mas por sua função: este homem de 67 anos é o melhor de vendedor de sua agência automobilística há mais de uma década, e esmera-se em apresentar troféus e outros prêmios em seu escritório. Ele detesta a ideia de aposentadoria. Mais do que isso, Marcel odeia qualquer transformação.

    A câmera acompanha este homem com um olhar de pesquisador, como se estivesse diante de sua cobaia, seu objeto de estudo. Guardando distância (são muitas as cenas com teleobjetiva, através de vidros), a imagem mostra no entanto um interesse incondicional pelo personagem e não desvia o olhar do seu rosto, do seu corpo, das suas palavras extremamente hábeis na hora de convencer um cliente. O filme concentra-se em Marcel como se fosse o espécime em extinção, enquanto tudo que o espectador pode ver é a rotina comum de um bom profissional.

    Esta gravidade que circunda o protagonista impregna também a fria cidade ao redor. Os habitantes da usina vizinha estão em greve contra o encerramento das atividades da empresa, e é o número de dias em que não trabalham que aparece na tela, interrompendo a história de Marcel, homem que não para de trabalhar. O roteiro mostra um descompasso nesta cidade, uma sensação de crise que ultrapassa a evidente esfera econômica para chegar ao domínio do indivíduo. Marcel, o vendedor que tem "sempre um sorriso no rosto", admite em uma festa que ele mente, mas "para deixar as pessoas felizes". A felicidade, aqui, é acima de tudo uma construção social.

    Dentro da sala de cinema, nesta altura do filme, algumas pessoas começavam a se mexer em suas cadeiras, a perguntar aos vizinhos de poltrona se enfim algo aconteceria com aquele homem. Onde tudo isso vai levar? Seria este um daqueles raros filmes "sem conflito", onde nada acontece, nenhum personagem evolui, justamente pelo prazer conceitual de diferenciar-se das outras produções atuais? Mas tanto os enquadramentos, de uma precisão cirúrgica, quanto a montagem brusca e a sublime atuação de Gilbert Sicotte indicam que há ali mais do que o gosto de fazer cinema apenas pela questão artística. O Vendedor é um clássico "estudo de personagem", e um dos mais complexos que o cinema tenha mostrado recentemente.

    Para a satisfação geral – e um pouco mórbida – do público, o tal acontecimento gravíssimo, para o qual vínhamos sendo preparados, de fato virá, mas o filme nos nega o prazer de viver o drama junto do personagem. O roteiro desvia a atenção do evento maior para se concentrar nos bastidores, no efeito provocado no trabalho de Marcel. Neste momento, a crise econômica da cidade funde-se à crise de Marcel, em uma mesma negação da realidade, uma mesma sensação de injustiça.

    O Vendedor torna-se um filme sobre o inconformismo. Um filme inquieto, que percebe algo muito errado no funcionamento social, mas que nunca aponta com o dedo a origem do problema. Coroado por uma cínica e belíssima cena final, o roteiro consegue desenvolver uma obra tão política quanto dramática, evitando ao mesmo tempo a demagogia e as lágrimas. Este é um filme importante, que deixa o grito entalado na garganta, sem um momento sequer de vazão. Uma dura constatação do crescente mal-estar na sociedade.

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