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    Nostalgia da Luz
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Nostalgia da Luz

    A percepção do tempo

    por Francisco Russo

    “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”. Ao escrever esta frase, o bardo William Shakespeare jamais imaginaria como ela se encaixa tão bem na proposta do documentário Nostalgia da Luz, novo trabalho do documentarista chileno Patricio Guzmán. Não exatamente pelo mesmo motivo: se em “Hamlet” ela ganha ares subjetivos ao retratar os mistérios da vida que a ciência desconhece, no longa-metragem assume uma função mais literal. Afinal de contas, o filme tem como palco central o deserto do Atacama, um local tão seco que, ao mesmo tempo, atrai astrônomos e arqueólogos.

    A grande sacada do longa-metragem é como lida com a percepção do tempo. Se tudo que é visto no espaço é um retrato do passado, já que os eventos vislumbrados ocorreram a sabe-se lá quantos anos-luz, o mesmo acontece na Terra. Por um motivo muito simples: um mero piscar de olhos oferece ao cérebro a imagem de um passado recente. São milésimos de segundo, é verdade, mas ainda assim não se trata do presente. A partir desta analogia, o longa oferece ao espectador uma divagação contemplativa sobre céu e terra, da importância de cada um às semelhanças que possuem. Se o homem olha para o alto para descobrir o passado, há na própria terra muito a ser descoberto.

    O deserto do Atacama é o palco ideal para tal comparação devido às suas particularidades: sua mínima umidade faz com que poucas nuvens se formem no local, possibilitando uma vista límpida e privilegiada das estrelas. Não à toa, vários são os observatórios construídos no local. Pelo mesmo motivo, o clima seco ajuda a preservar o que está no solo. Desenhos pré-colombianos e restos mortais são lá encontrados em um estado de conservação impressionante. É a partir destas análises que Guzmán, enfim, atinge o ponto central do documentário: revelar as fraturas do passado e ressaltar a necessidade de investigá-las para a vida no presente.

    Para tanto, o diretor volta ao tema mais doloroso da história recente do Chile: a ditadura de Pinochet, que fez com que milhares de cidadãos simplesmente desaparecessem. Alguns destes ressurgem no Atacama, parcialmente ou em sua totalidade. O impacto visual da busca pelos corpos de Calama ganha ainda mais força a partir dos emocionantes depoimentos coletados por Guzmán, de pessoas que se recusam a desistir porque precisam de uma resposta que lhe traga paz. Mesmo que esta venha através da confirmação da morte.

    De ritmo lento e com imagens belíssimas, graças especialmente ao cenário promovido pelo deserto, Nostalgia da Luz é um filme reflexivo que busca entender a necessidade humana em saber mais sobre si mesma. A célebre pergunta “o que somos” surge tanto no âmbito cósmico quanto no social, habilmente unidas pelo diretor através da narrativa. Belo filme.

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