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    Sal para a Svanécia
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Sal para a Svanécia

    A ficção encontra o documentário em 1930

    por Bruno Carmelo

    É fascinante que os cinemas do festival É Tudo Verdade recebam em 2017 um documentário como este: mudo, em preto e branco, realizado num vilarejo minúsculo da extinta União Soviética. Acima de tudo, combina ficção e documentário, em vias inovadoras, atípicas para os moldes da época e relevantes para refletir o cinema de hoje. O hibridismo ocorreu por razões práticas: incapaz de completar sua ficção sobre a miséria do povo na Svanécia, o diretor Mikhail Kalatozov completou a obra com trechos documentais.

    O resultado é o encontro potente da linguagem cinematográfica mais calculada com irrupções de espontaneidade. Neste filme-denúncia assumidamente político, o diretor utiliza a sua câmera do modo mais expressivo possível. Os plongés encarregam-se de esmagar o povo na planície seca, representando o ponto de vista da elite, enquanto contra-plongés servem para enaltecer os operários, tecelões e operários de minas. O diretor soviético usa basicamente as ferramentas que Leni Riefenstahl, cineasta oficial de Hitler, consolidaria para o discurso nazista quatro anos mais tarde em O Triunfo da Vontade. Isso ajuda a relembrar que um mesmo recurso pode ser usado para finalidades totalmente diferentes: a faca que mata é a mesma que prepara a comida.

    Neste caso, estamos do lado oposto ao de Riefenstahl no espectro ideológico. Sal Para a Svanécia posiciona-se do lado dos trabalhadores, cortados do resto da civilização pela ausência de uma estrada ligada ao resto do país, e correndo o risco de morrer pela escassez de sal. O cineasta registra belamente a ironia da situação: o sal da terra é o que falta neste local árido, cercado por cordilheiras repletas de gelo. O clima e o espaço são captados de modo operístico, num tom exacerbado para os padrões contemporâneos, mas com uma eficiência ímpar: o diretor posiciona a câmera no cano de um revólver, no fundo de um poço, no topo de uma montanha, dentro de um lago para ver os animais atravessarem a ponte. O espectador acompanha a rotina junto dos habitantes da Svanécia, no meio deles, literalmente através dos fios de um tear. A câmera manifesta um ambicioso desejo de onisciência.

    É difícil determinar quais imagens seriam extraídas da ficção original, e quais foram puramente documentais. No final, isso pouco importa. A dificuldade em estabelecer esta distinção sublinha a força do caráter fictício, convincente em sua relação com a verdade histórica, e do documental, rebuscado o suficiente para ser tomado como possível construção artificial de espaços e personagens. Kalatozov, sem dispor de diálogos, demonstra como o uso da trilha sonora pode se tornar mais forte quando intercalado com silêncios profundos. Ao mesmo tempo, o cineasta mune-se de uma fotografia detalhista para ambiente de tons tão contrastados (o sol direto na terra, o escuro profundo do poço).

    Por fim, o documentário constitui um verdadeiro deleite estético, além de retornar a uma forma de cinema político inexistente no século XXI. Produções de caráter político ainda existem, é claro, mas raramente a linguagem cinematográfica é pensada de maneira tão clara a se posicionar ideologicamente pelos simples enquadramentos e montagem. Décadas antes da famosa fórmula de Jean-Luc Godard, o travelling já era questão de moral.

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